É um enorme clichê dizer que a matemática está mais que presente no cotidiano, principalmente para nós, engenheiros (ou futuros engenheiros). Clichê ou não, mesmo quando não usamos a matemática diretamente, pensar de forma matemática/lógica pode, muitas vezes, nos fazer enxergar o problema por outro ângulo, permitindo encontrar uma solução.
Para exemplificar, vamos contar a história de Abraham Wald (1902-1950), um matemático que nasceu em uma cidade que fazia parte do Império Austro-Húngaro, deixou a Europa e morou nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. Após um tempo nos Estados Unidos, Wald entrou para o Statistical Research Group (SRG), um programa sigiloso que juntava os estatísticos norte americanos para aplicar a matemática na guerra (como Wald era estrangeiro, não tinha permissão para ver relatórios sigilosos, mesmo que ajudasse na sua produção). Wald tinha uma mente brilhante e usou o pensamento matemático para resolver a seguinte questão:
Para evitar que os aviões sejam derrubados pelos inimigos, é necessário blindá-los. Porém, a blindagem torna o avião mais pesado e usa mais combustível. Assim, é necessário escolher uma parte do avião para blindar, mas qual?
Os aviões que retornavam da Europa tinham furos de bala distribuídos de forma não homogênea. Na tabela abaixo estão alguns dados:
A resposta
Uma análise rápida da tabela permite ver que há mais furos na fuselagem do avião que no motor. Então, as partes que recebem mais furos devem receber blindagem, certo?
Errado! Segundo Wald, as partes que devem receber blindagem são aquelas nas quais os furos não estão, ou seja, nos motores. Por quê?
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A resposta é simples: para Wald, os furos de bala que faltavam estavam nos aviões que faltavam. Os aviões voltaram com menos marcas de balas no motor porque os aviões que eram atingidos no motor simplesmente não voltavam. Se os aviões que recebiam mais tiros na fuselagem voltavam, isso significava que essa parte suportava receber mais tiros, enquanto os aviões que recebiam mais tiros no motor eram abatidos e não retornavam.
Em seu livro “O poder do pensamento matemático” (How Not to Be Wrong: The Power of Mathematical Thinking), o professor Jordan Ellenberg discute a história de Wald e sua relação com a forma que os matemáticos pensam.
Os oficiais que tinham as estatísticas dos aviões achavam melhor blindar as partes que tinham maior número de furos de balas e acreditavam que os aviões que voltavam eram uma amostra aleatória de todos os que foram para a guerra. Porém, essa ideia é falsa, a amostra não era aleatória. É necessário considerar algumas variáveis como zero na análise (neste caso, uma delas é a probabilidade de um avião que levou um tiro no motor permanecer no ar).
Por trás de uma guerra não há só tiros e bombardeios, há pessoas pensando e tentando otimizar o ataque e melhorar a defesa. Analisar a tabela sem entender o contexto da história e sem pensar nas hipóteses pode levar ao erro. Os próprios oficiais que faziam parte da guerra foram induzidos a um pensamento que não seria correto ao afirmarem que era necessário blindar a fuselagem.
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A matemática
Não é a matemática que está errada quando alguém diz que é melhor blindar a fuselagem do avião, o erro está na forma como a análise matemática é feita. Wald fez cálculos para descobrir que faltava alguma coisa, alguma variável que não foi considerada.
Muitas vezes, para resolver alguns problemas, é necessário inverter hipóteses e abstrair um pouco. Segundo o professor Ellenberg, o que está por trás disso é o viés de sobrevivência e, uma vez que estamos familiarizados com ele, como Wald, é fácil perceber onde está o erro. O viés de sobrevivência é o erro lógico de nos concentrarmos naquilo que resistiu (sobreviveu), ignorando o que não vemos diretamente.
A matemática é, frequentemente, manipulada para podermos acreditar no que os outros querem, principalmente quando o assunto envolve estatística. Como engenheiros/futuros engenheiros, é preciso questionar o tempo todo sobre a existência de variáveis que não vemos, precisamos enxergar além do viés de sobrevivência.
Não só ter um olhar mais crítico para o que vemos, mas também para o que fazemos. É necessário desconfiar quando nossa metodologia está errada, seja porque os resultados são muito ruins ou bons demais. Devemos saber quando nossos próprios “dados estão viciados”, produzindo resultados bons, mas que não são justos ou corretos.
Veja Também:
Fontes: Wald, A. (1980); Ellenberg, J. "How Not to Be Wrong: The Power of Mathematical Thinking" (2014); Mangel e Samaniego (1984).
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Larissa Fereguetti
Cientista e Engenheira de Saúde Pública, com mestrado, também doutorado em Modelagem Matemática e Computacional; com conhecimento em Sistemas Complexos, Redes e Epidemiologia; fascinada por tecnologia.