Engenharia 360

Como machine learning pode ajudar a driblar a resistência a antibióticos?

Engenharia 360
por Kamila Jessie
| 03/04/2020 5 min

Como machine learning pode ajudar a driblar a resistência a antibióticos?

por Kamila Jessie | 03/04/2020
Engenharia 360

Uma equipe de cientistas anunciou que, junto a um algoritmo
de deep learning, encontraram um
antibiótico totalmente novo, com um mecanismo de ação não-convencional que
permite combater infecções resistentes a vários medicamentos. O composto estava
“disfarçado”, sendo investigado como um possível tratamento para o diabetes. O algoritmo
soube onde procurar.

ilustracao de moleculas formando atomos a partir de algoritmos
Imagem: scitechdaily.com

Preconceitos em inteligência artificial são um problema até
em nível molecular

Usar aprendizado de máquina para dar sentido a dados biomédicos não é novidade. Mas a equipe do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT, liderada por James Collins, que estuda aplicações da biologia de sistemas à resistência a antibióticos, e Regina Barzilay, pesquisadora de inteligência artificial, alcançou sucesso desenvolvendo uma rede neural que evita os preconceitos potencialmente limitantes dos cientistas sobre o que procurar. Em vez disso, o computador desenvolve sua própria experiência. Os resultados foram publicados na edição de 20 de fevereiro da revista Cell.

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Desde que Alexander Fleming derivou o primeiro antibiótico de
fungo, a penicilina, a natureza tem sido a fonte de nossos medicamentos
antibacterianos. Mas isolar, filtrar e sintetizar compostos naturais para
testes de laboratório é extremamente caro e demorado. Quem trabalha em
laboratório conhece essa luta e o tempo que ela consome.

Para reduzir esforços, pesquisadores tentam entender como as bactérias vivem e se multiplicam e, em seguida, buscam compostos que atacam esses processos (como danificar as paredes celulares das bactérias, bloquear sua reprodução ou inibir sua produção de proteínas, por exemplo). "Você começa com os mecanismos e depois faz engenharia reversa da molécula", disse a pesquisadora Regina Barzilay. (Circuitos biológicos já são modelados em machine learning e você pode conferir isso aqui).

Regina Barzilay. Professora de ciência de computação no MIT. Engenharia 360.
Regina Barzilay. Professora de ciência de computação no MIT. Foto: John D. & Catherine T. MacArthur Foundation

Bactérias se tornam resistentes muito mais rápido do que
medicamentos são desenvolvidos

Mesmo com a introdução de métodos de triagem assistida por computador na década de 1980, o progresso no desenvolvimento de antibióticos não tem sido tão excepcional quanto a resistência das bactérias. Ocasionalmente, a triagem mostrava candidatos a medicamentos tóxicos para as bactérias, mas eram muito semelhantes aos antibióticos que já existem.

O novo trabalho de Barzilay, Collins e seus colegas, no
entanto, adota uma abordagem radicalmente nova e quase paradoxal da descoberta
de drogas: ignora como o medicamento funciona. É uma abordagem que só pode ter
sucesso com o suporte de uma computação extremamente poderosa para lidar com big data.

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Collins, Barzilay e sua equipe treinaram sua rede para
procurar qualquer, sim, qualquer composto que inibisse o crescimento da famosa bactéria
Escherichia coli. Eles fizeram isso
apresentando ao sistema um banco de dados de mais de 2.300 compostos químicos
que tinham estruturas moleculares conhecidas e foram classificados como
"acertos" ou "não acertos" em testes de sua capacidade de
inibir o crescimento de E. coli. A
partir desses dados, a rede neural aprendeu quais arranjos de átomos e estruturas
de ligação eram comuns às moléculas que contavam como acertos.

Como apenas cerca de 10% dos compostos no banco de dados de
treinamento eram antibióticos
conhecidos, a rede neural não era influenciada por suposições sobre como as
moléculas antibióticas deveriam funcionar ou como elas deveriam ser. Por causa
disso, foi autorizado a encontrar compostos que divergiam dramaticamente dos
medicamentos atuais.

Obviamente, a capacidade de inibir bactérias não é o único
critério importante: cianeto e arsênico também podem matar algumas bactérias,
mas isso não as torna antibióticos
úteis. Os pesquisadores também treinaram o algoritmo para prever a toxicidade
dos compostos e eliminar as moléculas candidatas nessa base.

Que rolem os dados

Como não dá para segurar cientistas de dados, eles soltaram a rede treinada na Drug Repurposing Hub, uma biblioteca de mais de 6.000 compostos que já estão sendo examinados para uso em seres humanos em uma ampla variedade de condições. "Usando esses algoritmos, podemos começar a encontrar propriedades essencialmente novas em moléculas que foram usadas para algo completamente diferente", disse César de la Fuente, professor de bioengenharia, microbiologia e psiquiatria da Escola de Medicina Perelman da Universidade da Pensilvânia, que usa inteligência artificial para tentar criar novos antibióticos.

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A equipe de cientistas combinou sua super triagem para
propriedades antibacterianas com uma triagem de toxicidade e, em seguida,
eliminou os compostos que eles classificaram como muito semelhantes aos antibióticos existentes, já que as
bactérias provavelmente já seriam resistentes a eles. Um candidato a
medicamento emergiu: o inibidor da cinase c-Jun N-terminal SU3327, que já está
sendo estudado como um possível tratamento para o diabetes. Os pesquisadores
nomearam o composto halicina.

Culturas de bactérias tratadas com halicina. Foto Collins Lab para a Quanta Magazine. Engenharia 360.
Culturas de bactérias tratadas com halicina, na parte superior, e antibióticos convencionais, na parte inferior. Foto Collins Lab para a Quanta Magazine.

Testes realizados em laboratório revelaram que a halicina
não apenas interrompeu o crescimento de E.
coli
com eficiência, mas também matou outras bactérias, incluindo Mycobacterium tuberculosis (a causa da
tuberculose), Clostridioides difficile
(que causa doença gastrointestinal) e uma grande variedade de outras bactérias resistentes a antibióticos. Igualmente promissor foi
que, enquanto a maioria dos antibióticos
gera indícios de resistência após
alguns dias de testes de laboratório, a halicina não produziu mutantes
resistentes à E. coli após um mês de
exposição repetida.

Foi somente após testar a halicina no laboratório e ver seu
amplo sucesso como um antibiótico que os pesquisadores começaram a investigar
seus mecanismos de ação.

Triagem adicional de uma coleção muito maior de compostos -
mais de 107 milhões deles - com a mesma rede treinada trouxe à tona um segundo
potencial antibiótico promissor. Normalmente, a ideia de rastrear e testar uma quantidade
assim de moléculas seria absurda. Mas o algoritmo foi capaz de avaliar e
classificar todas essas moléculas em apenas quatro dias, restringindo o campo a
apenas 23 candidatos promissores para testes físicos.

Inteligência artificial não faz milagre

A gente precisa comentar também que o sucesso do novo algoritmo levou a algumas reportagens que declararam o início de uma nova era de antibióticos inventada pela inteligência artificial. Mas cuidado: é importante ressaltar explicar que não é assim que a coisa funciona: a descoberta não teria sido possível sem um trabalho humano atencioso. E, além disso, Regina Brazilay explica que: "Não é a máquina que inventou a molécula. É que a máquina ajudou os humanos a escanear o enorme espaço de possibilidades e ampliar o conjunto de hipóteses testadas."

Além disso, sem dados de treinamento de qualidade selecionados por humanos, mesmo um algoritmo forte pode ser ineficaz ou até tendencioso na hora de reconhecer padrões. Além disso, mais de um pesquisador alertou que a quantidade de dados de qualidade disponíveis para redes de treinamento para encontrar novos antibióticos é atualmente limitada, o que representa um obstáculo para trabalhos futuros.

Vale destacar que o trabalho do silício, digamos assim, não substituirá
os testes in vitro, e certamente não eliminará os ensaios clínicos. As
moléculas identificadas precisarão ser validadas em laboratório.

Fonte: MIT News. Quanta Magazine.

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Kamila Jessie

Doutora em Hidráulica e Saneamento pela Universidade de São Paulo (EESC/USP) e Mestre em Ciências pela mesma instituição; é formada em Engenharia Ambiental e Sanitária pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG) com período sanduíche na University of Ottawa, no Canadá; possui experiência em tratamentos físico-químicos de água e efluentes; atualmente, integra o Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (CePOF) do Instituto de Física de São Carlos (USP), onde realiza estágio pós-doutoral no Biophotonics Lab.

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