A convergência entre engenharia, biologia e tecnologia vem transformando nossa forma de compreender e tratar o corpo humano. Em uma entrevista exclusiva para o Engenharia360 durante o evento 3DEXPERIENCE World 2025, em Houston, no Texas, Steve Levine compartilhou detalhes sobre o Projeto Living Heart, a construção do gêmeo digital do coração e os desafios e oportunidades associados à integração da simulação computacional aos cuidados de saúde. Confira no artigo a seguir!
O surgimento do Projeto Living Heart
Em um relato que mescla experiência pessoal e visão pioneira, Steve Levine explica os primórdios do Projeto Living Heart. A inspiração surgiu de um desafio íntimo: a condição cardíaca rara de sua própria filha, nascida com um defeito que inverteu as funções dos lados do coração. Segundo Levine, “se você quer entender e simular a vida, que melhor exemplo do que o coração humano?”
“Eu pensei, por que não construir um gêmeo digital do coração? Se aplicássemos a mesma abordagem usada em áreas como a aeroespacial – onde milhares de engenheiros trabalham em colaboração através de plataformas 3D – poderíamos simular com precisão o órgão vital.”
Essa iniciativa partiu da ideia de que os médicos, baseados em poucos dados clínicos, deveriam poder contar com simulações precisas para orientar tratamentos e intervenções.

Assim, trabalhando em conjunto com especialistas em cardiologia, eletrofisiologia, mecânica dos tecidos e hemodinâmica, a equipe liderada por Levine conseguiu, em apenas um ano, desenvolver um modelo completamente funcional do coração digital. Esse avanço não apenas provou que a ideia era possível, mas também abriu caminho para transformar a estratégia dos estudos e ensaios clínicos na área da saúde.

O projeto iniciou sua trajetória com a ideia de “harmonizar produtos com a vida e a natureza”, visando criar dispositivos que não apenas funcionassem bem, mas que também contribuíssem para um mundo mais sustentável e centrado no bem-estar humano. Ao fundir ciência dos materiais, dados de imagens de ressonância magnética e tomografias, e avançadas simulações computacionais, a tecnologia evoluiu a ponto de possibilitar o teste digital de dispositivos médicos para obtenção de aprovação regulatória – um feito inédito que trouxe novos paradigmas para o setor.
Veja Também: Living Heart: Projeto de simulação 3D de coração humano
Desafios técnicos e o papel da Inteligência Artificial
Criar um gêmeo digital do coração não foi tarefa simples. Segundo Levine, os principais desafios técnicos envolvem a integração de diversas “físicas” que regem o funcionamento do órgão:
- Reconstrução 3D a partir de imagens médicas: O modelo é iniciado com a criação da forma anatômica usando dados de ressonância magnética (MRI) e tomografias (CT), que são convertidos em objetos tridimensionais.
- Aplicação de propriedades dos tecidos e sistemas elétricos: O coração é um órgão eletromecânico, combinando estrutura mecânica, dinâmica de fluidos e campos elétricos. Cada um desses elementos é modelado e integrado em uma simulação que permite observar desde o movimento das válvulas até a condutividade elétrica dos tecidos.
- Modelos multiescala: A simulação digital deve abranger desde interações moleculares – como as que ocorrem entre proteínas e DNA – até o comportamento do órgão em nível macroscópico. Isso é fundamental para testar, por exemplo, o efeito de um novo medicamento em diferentes níveis de complexidade.
Para gerir tais desafios, a inteligência artificial (IA) desempenha papel crucial durante o desenvolvimento e a operação dos modelos. Como Levine destaca:
“A IA não só acelera o processo de modelagem, mas também agrega a capacidade de interpretar grandes volumes de dados, permitindo uma simulação robusta e mais precisa das operações do coração.”
Integrar a IA ao processo de simulação permite a análise de dados em tempo real e a adaptação dos modelos com base em novas informações, aumentando a confiabilidade dos testes virtuais e reduzindo a dependência de ensaios clínicos em humanos. Essa abordagem traz benefícios significativos, como a redução de custos e a possibilidade de testar tratamentos em coortes virtuais que replicam a diversidade da população real.

Barreiras para a adoção dos modelos computacionais na Medicina
Embora os avanços tecnológicos sejam inegáveis, a adoção de modelos computacionais na medicina enfrenta desafios em várias frentes:
1. Resistência dos profissionais de saúde
Historicamente, muitas práticas médicas foram desenvolvidas sem o auxílio direto da tecnologia digital. Assim, há uma certa relutância em adotar novas ferramentas que, à primeira vista, parecem complexas ou desconectadas da prática clínica tradicional. Levine comenta:
“Inicialmente, a maior barreira foi a percepção de que o corpo humano é tão imprevisível que a simulação não seria capaz de capturar a complexidade do funcionamento real. Mas, com o tempo, os médicos começaram a perceber que a máquina não era mais inteligente – ela apenas possuía mais informações.”
2. Questões regulamentares e de privacidade
A recente publicação das diretrizes da FDA para o uso dos gêmeos digitais abre novas portas, mas ainda persiste a desconfiança ligada a dados pessoais e à privacidade dos pacientes. No entanto, as simulações baseadas em informações físicas e anatômicas não dependem do armazenamento massivo de dados pessoais, o que representa um avanço na proteção da privacidade.
3. Educação e capacitação
Outra barreira importante é o tempo necessário para treinar os profissionais de saúde a incorporar essas novas tecnologias na prática clínica. Levine enfatiza que a formação médica, tradicionalmente baseada em experiência prática adquirida ao longo de anos, precisa integrar as novas ferramentas digitais desde os primeiros momentos da carreira dos profissionais.
“Quando se trata de treinamento, os novos médicos precisam praticar com modelos virtuais. Esse aprendizado acelerado não apenas os prepara para lidar com tratamento de doenças em ambientes controlados, mas também cria uma nova geração de profissionais mais aptos a operar em um cenário digital,” afirma Levine.
Essa integração gradual pode levar alguns anos, mas as expectativas são de que, em breve, as universidades e programas de residência em medicina comecem a incluir a modelagem digital como parte essencial do currículo.

Impacto dos gêmeos digitais na Medicina personalizada e no ensino
Um dos aspectos mais empolgantes da utilização dos gêmeos digitais é a possibilidade de transformar a medicina personalizada. Ao invés de aplicar tratamentos com base em dados genéricos, cada paciente pode ter seu próprio modelo digital – uma réplica virtual que captura não apenas a estrutura física, mas também as particularidades e as condições de saúde ao longo do tempo.
Benefícios para os pacientes
Com o gêmeo digital, os médicos poderão realizar simulações prévias ao tratamento, ajustando intervenções conforme a resposta virtual do paciente. Esse recurso tem o potencial de reduzir a necessidade de testes extensivos em pacientes reais e, ao mesmo tempo, melhorar a precisão dos tratamentos, evitando, por exemplo, ajustes inadequados em intervenções cardíacas e cirurgias complexas.
Além disso, os diagnósticos poderão ser realizados com base em informações acumuladas por meio de dispositivos conectados (como smartwatches), que monitoram sinais vitais e comportamentos diários, integrando esses dados no modelo virtual para avaliar a evolução da saúde do paciente.

Transformação no ensino e na prática clínica
A aplicação dos gêmeos digitais transcende o ambiente clínico. No ensino, há um vasto potencial para a simulação de cenários que antes só poderiam ser construídos a partir de casos reais. Levine enfatiza que a experiência prática com simulações virtuais permitirá aos novos médicos vivenciar uma gama diversificada de situações em um curto período de tempo, acelerando assim o aprendizado e a capacidade de resposta a crises médicas.
“Imagine que, em vez de esperar anos para ver um espectro diversificado de condições, os alunos de medicina possam interagir com centenas de casos virtuais, em que cada ‘paciente’ reage de maneira única conforme sua história.”
Além disso, a colaboração entre diferentes especialidades tende a se intensificar, uma vez que os profissionais poderão trabalhar em conjunto na plataforma virtual para analisar e testar tratamentos, promovendo uma abordagem integrada e sistêmica da saúde.

Lições para o futuros dos engenheiros
Para os estudantes de engenharia, o relato de Steve Levine traz lições valiosas sobre a importância da interdisciplinaridade e da busca por soluções inovadoras. O futuro da engenharia está intrinsecamente ligado à capacidade de integrar conhecimento de diversas áreas – da mecânica e da física à biologia e à informática. Entre os principais aprendizados, destacam-se:
- Visão sistêmica: Entender que o corpo humano, assim como uma máquina complexa, funciona com interfaces padronizadas entre seus componentes. Essa percepção pode inspirar novos projetos que integrem a engenharia humana com dispositivos eletrônicos e digitais.
- Inovação baseada em dados reais: A reconstrução de modelos virtuais a partir de dados reais (como imagens médicas) demonstra como a coleta, organização e interpretação de dados são fundamentais para avançar em inovações.
- Integração de tecnologias emergentes: O uso da inteligência artificial para aprimorar simulações e a integração entre múltiplos domínios do conhecimento representam um horizonte desafiador e gratificante para os engenheiros do futuro.
- Impacto social e ético: Levar em conta as implicações éticas e o impacto direto sobre a vida das pessoas deve ser um componente central no desenvolvimento tecnológico. A experiência pessoal de Levine, ao ver sua filha se tornar uma inspiração e profissional dedicada, ressalta a importância de utilizar a tecnologia para salvar e melhorar vidas.
“Se você deseja construir algo que dure e seja verdadeiramente impactante, é essencial que compreenda não só os aspectos técnicos, mas também como essas inovações se conectam à vida real das pessoas,” conclui Levine.
À medida que a comunidade médica avança na integração dos gêmeos digitais aos processos clínicos e os órgãos virtuais ganham a confiança dos reguladores e dos consumidores, o futuro da engenharia biomédica se mostra promissor e repleto de desafios inspiradores. A inovação que hoje nasce de uma experiência pessoal tem o potencial de transformar a forma como enxergamos a saúde e de abrir novas trilhas no ensino e na prática da engenharia.
Este relato da entrevista com Steve Levine reforça que a inovação exige audácia, colaboração e, acima de tudo, a convicção de que o conhecimento pode e deve ser usado para transformar vidas. Para os futuros engenheiros, a mensagem é clara: mirar nos desafios mais complexos e integrá-los nas soluções do amanhã será o caminho para uma carreira de sucesso e impacto social.
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