Deixa eu contar um pouco a você sobre a minha cidade, Porto Alegre. Ela foi manchete nos principais jornais do mundo neste abril e maio de 2024. Isto porque a região, assim como quase 400 outros municípios do estado, sofreram com as chuvas, as enchentes, deslizamentos e mais. Logo, o nosso estuário Guaíba, que banha a cidade, recebeu um volume absurdo de água. E o famoso Muro da Mauá ou do Cais Mauá foi testado como nunca.
Cresci ouvindo as histórias dos mais velhos sobre uma enchente de 1941 que teria enchido o centro da cidade, criando um caos na vida de todos. Mas também me tornei adulta ouvindo, inclusive na faculdade de Arquitetura, sobre um muro construído para proteger a cidade. E, assim como eu, muitos pensavam que estávamos protegidos. Porém, os fatos recentes provam que o clima da Terra mudou e, para tal, não estamos salvos. Confira mais detalhes no texto a seguir, do Engenharia 360!
A Grande Enchente de 1941 e a construção do Mura da Mauá
A Grande Enchente de 1941 é uma lembrança marcante na história de Porto Alegre. Ela ocorreu naquele ano justamente nos mesmos meses, abril e maio. As águas do Guaíba submergiram vastas áreas do bairro Centro, deixando um rastro de destruição e deslocando milhares de pessoas. Os relatos detalhados dessa tragédia já nos apontavam não apenas a força da natureza, mas também a vulnerabilidade da cidade diante de eventos extremos.
Pensando nisso, na década de 1970, foi decidida a construção de um muro para proteção da cidade contra inundações de até 6 metros, o Muro da Mauá. A estrutura foi feita em concreto armado de 2,6 quilômetros de extensão e 3 metros de altura. Este obstáculo físico é para ser a última linha de defesa contra as águas. Porém, por muito tempo foi questionada a sua permanência e como afetava o visual da orla porto-alegrense.
Hoje entendemos a importância do Muro da Mauá. Porém, de alguma forma, ele não conseguiu cumprir bem o seu papel nas enchentes de 2024, quando o Guaíba atingiu a marca recorde de 5,3 metros. A falha do sistema, que também inclui 68 km de diques, 14 comportas e 19 casas de bomba, está sendo muito questionada. Afinal, o que deu errado? Será que houve negligência e falta de manutenção por parte das autoridades responsáveis? Fica o debate.
Sobre o sistema de proteção contra enchentes de Porto Alegre
Durante o período mais triste da história de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul, ouvimos muito das autoridades de que não faltou manutenção, de que apenas o sistema de proteção de Porto Alegre é que não havia sido testado para nada igual.
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O fracasso do sistema
Longe de mim questionar se houve culpados ou não. Fato é que, assistindo às mudanças climáticas, já deveríamos prever cenários piores. E toda engenharia pode ser testada de antemão, sim, sobretudo com auxílio de softwares e cálculos. Do contrário, precisaríamos ver diversas quedas de avião para aprimorar as aeronaves, não é mesmo? Neste momento, temos esta estrutura emblemática, marco do nosso urbanismo e que virou símbolo de colapso.
Como dito antes, o Muro da Mauá não deveria agir sozinho para a proteção de Porto Alegre. Existem outros elementos fundamentais nesta equação. Primeiro, é claro, as comportas ou "portões metálicos" fechando este muro. Depois, os diques, margeando o Guaíba e contendo os arroios. E as dezenas de estações de bombeamento de água da chuva; e é aí que a coisa pegou.
Causas do colapso
Pouco depois das águas do Guaíba ultrapassarem os 3 metros e das comportas serem fechadas, já recebemos imagens do centro, mais precisamente da zona ao lado do Mercado Público, com a primeira casa de bombas precisando ser desligada. Na sequência, muitas outras pararam, jogando o excesso de água para as ruas, ao invés de jogar de volta para o estuário. Uma das comportas chegou a se romper, na linha do bairro Navegantes. E os diques, como o da Fiergs e do Sarandi, se mostraram insuficientes, quase entrando em colapso sobre a pressão do volume de água.
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Especialistas apontam que o sistema como um todo, concebido décadas atrás, não estava preparado para lidar com os desafios atuais e o aumento na frequência e intensidade das chuvas.
"O sistema falhou miseravelmente", "As falhas se deram nos pontos de abertura do muro. A água passou por cima em alguns pontos. As comportas não foram bem vedadas. E no momento crucial não teve energia elétrica para bombear água de dentro para fora do sistema. Foi um descuido de décadas" - analisou Walter Collischonn, professor de engenharia ambiental da UFRGS, em reportagem de Deutsche Welle.
"Lamentavelmente, todo o sistema não teve uma manutenção adequada. As comportas já estavam bastante abauladas. Faltavam parafusos. Um dos portões veio abaixo com a força da água" - arquiteta Lígia Bergamaschi Botta, que acompanhou a construção do sistema nos anos 1970.
Os planos para o Cais Mauá e a substituição do Muro da Mauá
É inacreditável pensar que até pouquíssimo tempo atrás ouvíamos tanto sobre a revitalização do Cais Mauá com os planos de mudança desse sistema de proteção via abordagem flexível. A ideia era assinar um consórcio para implementar uma solução adaptável aos desejos da população (ou dos políticos, talvez) de permitir melhor contato visual com o Guaíba, liberar mais o acesso à orla, expandir a área central da cidade e criar mais espaços públicos dinâmicos.
No lugar do Muro da Mauá, teríamos diques móveis/removíveis ou diques temporários infláveis e elementos paisagísticos, como jardins e arquibancadas. É claro que este discurso quase utópico, de projeto mais inclusivo e sustentável, vai precisar ser refeito. Certamente, os novos estudos precisarão avaliar toda a viabilidade técnica e econômica de soluções muito mais potentes e resilientes para preservar a cidade e seu patrimônio histórico, antes de integrá-la ainda mais com o Guaíba.
Rumo a um futuro mais resiliente e integrado
Nem preciso dizer quanto o povo porto-alegrense, canoense, leopoldense e mais está indignado com o que aconteceu. O cenário é desolador. Certamente nenhum discurso raso será mais aturado. Precisamos agora pensar em elevação do Muro da Mauá, modernização das comportas, implementação de tecnologias mais avançadas nas casas de bombas e uma série de outras soluções emergenciais. Além disso, gestão de riscos e planejamento urbano eficiente para evitar futuras catástrofes.
"No sul do Brasil, as estimativas são de que as cheias vão aumentar. O que está acontecendo nos últimos anos pode ser o cenário do século 21" - Collischonn.
Nossa obrigação como sociedade é preservar esse legado; e neste contexto, a engenharia tem um papel crucial a desempenhar. Porto Alegre deve se reerguer lentamente. O que pesa é saber que isto acontecerá mediante o sofrimento de um povo que já vinha sofrendo muito por conta de tantas desgraças, incluindo a pandemia de 2019.
Fontes: G1, CNN, O Sul, Zero Hora.
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Simone Tagliani
Graduada nos cursos de Arquitetura & Urbanismo e Letras Português; técnica em Publicidade; pós-graduada em Artes Visuais, Jornalismo Digital, Marketing Digital, Gestão de Projetos, Transformação Digital e Negócios; e proprietária da empresa Visual Ideias.