O ano de 2020 não começou nada fácil (e parece que o de 2022 também) para Belo Horizonte, capital de Minas Gerais. Além de suspeita de casos de coronavírus e de lotes de bebida contaminada, a cidade ficou alagada durante vários temporais históricos.
O total de chuva em Belo Horizonte no mês de Janeiro foi de 923,3 milímetros, um recorde na cidade. Antes disso, a maior chuva acumulada era de 1985, quando o total foi de 850,3 milímetros. A maior parte dessa chuva caiu em um curto intervalo de tempo, deixando um cenário trágico para trás.
Até o momento, 57 pessoas morreram em Minas Gerais, 44.929 estão desalojadas e 8.259 estão desabrigadas. Vale destacar que outras cidades mineiras, do Rio de Janeiro e do Espírito Santo também enfrentaram problemas provenientes da chuva.
Planejada, mas não tudo
Belo Horizonte é uma das poucas cidades planejadas no Brasil. Ela projetada por Aarão Reis, que teve como base cidades europeias, rompendo o traçado ortogonal até então comumente encontrado nas demais cidades. A sua inauguração ocorreu em 1897.
Porém, a área realmente planejada é mais central e fica dentro da Avenida do Contorno, muito pequena comparada ao tamanho atual da cidade. Na época do seu planejamento, pensou-se em tudo: transporte, saneamento, saúde e educação.
Fora da área da Contorno havia uma espécie de cinturão verde que abastecia a cidade e cujo planejamento viria mais tarde, quando a cidade começasse a crescer. Os responsáveis pelo projeto só não pensaram que a cidade cresceria tão rápido ou que, talvez, o projeto de cidades europeias não seria o ideal para a topografia da capital mineira.
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Assim, Belo Horizonte cresceu rápido demais e as áreas fora da Avenida do Contorno ficaram sem a infraestrutura necessária. Só por aí já dá para perceber que os problemas relacionados ao planejamento urbano não tardariam a aparecer.
Fenômenos naturais
Fenômenos naturais catastróficos podem ser raros em determinadas regiões, mas eles acontecem. Quando pensamos nele no sentido da Engenharia, somos remetidos ao período de retorno (também chamado de intervalo de recorrência ou tempo de recorrência). Ele é o período estimado entre a ocorrência de fenômenos naturais.
Na prática, o período de retorno é o tempo médio que um evento se repete ou é superado. Um exemplo é: a vazão do rio X é maior que 45m³/s a cada 100 anos.
No caso de Belo Horizonte, o volume de chuvas de Janeiro foi o maior dos últimos 110 anos. Para aguentar tanta chuva seria preciso um planejamento urbano impecável, o que é praticamente impossível de se conseguir em poucos dias a partir da previsão de chuvas. Ainda, apesar de o foco deste texto ser a capital mineira, outras cem cidades decretaram estado de emergência.
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Os rios escondidos
Belo Horizonte, assim como várias cidades brasileiras, está sobre vários corpos hídricos. Muitos rios foram canalizados e, com o aumento da vazão devido às chuvas, não tem asfalto que aguente.
Há, na cidade, rios canalizados desde a década de 1920, quando tinha-se a ideia de que canalizar e concretar era a melhor solução. A Avenida dos Andradas, por exemplo, na capital mineira, fica sobre o Rio Arrudas. Com as chuvas, o resultado foi o estouro de diversos condutos e bueiros.
Seria preciso um grande projeto para reabilitar a rede hidrográfica de Belo Horizonte. Isso pode gerar uma parceria entre órgãos públicos, universidades, pesquisadores, estudantes e empresas privadas.
O risco geológico
Nos últimos dias, a defesa civil de Belo Horizonte soltou vários alertas relacionados ao risco geológico. Isso acontece porque as chuvas encharcam o solo e aumentam o risco de deslizamentos, desabamentos e quedas de muros.
Em chuvas torrenciais, o risco geológico costuma ser mais preocupante que o alagamento das ruas. Nesses casos, órgãos como a defesa civil e outros estaduais e municipais visitam áreas de risco e pedem que a população se retire das residências, o que nem sempre acontece.
O problema da retirada de moradores é grande. Há os que não têm lugar para ficar ou se recusam a ir para locais temporários (como escolas) ou casas de parentes, há os que retornam para a residência acreditando que o risco acabou porque a chuva parou, há os que não querem perder tudo que têm em casa e mais situações que podem levar a tragédias.
É preciso trabalhar com uma abordagem voltada para o lado social e pensar em soluções que sejam melhores para a população. Não adianta só solicitar que a pessoa saia de casa sem dar o devido suporte, bem como é preciso lembrar que aquela casa no alto da encosta pode ser o maior bem material que ela tem (mas que ele não vale mais que uma vida).
O papel da drenagem urbana
Segundo a Lei 13.308/2016, a drenagem e manejo das águas pluviais, limpeza e fiscalização das respectivas redes urbanas são caracterizadas como o “conjunto de atividades, infraestruturas e instalações operacionais de drenagem urbana de águas pluviais, de transporte, detenção ou retenção para o amortecimento de vazões de cheias, tratamento e disposição final das águas pluviais drenadas nas áreas urbanas”.
Quando falamos sobre drenagem urbana, há quem pense que o ideal é escoar a água para longe o mais rápido possível, o que é um grande problema. Se a água escoa rapidamente, significa que uma hora ela vai parar em algum lugar, que são normalmente os pontos mais baixos a jusante. Isso pode contribuir para que essas áreas fiquem alagadas e para que corpos hídricos transbordem, causando inundações.
Para evitar esses problemas, a urbanização e a ocupação do solo devem respeitar alguns fatores essenciais, como ter sistemas adequados de drenagem (na fonte, microdrenagem e macrodrenagem). As áreas verdes e solos permeáveis, por exemplo, permitem a infiltração de parte da água pluvial (evitando que ela escoe para outras áreas).
Se há muitas áreas impermeáveis, a tendência é de que a água escoe rápido, principalmente em chuvas de intensidade elevada. O resultado a gente já conhece bem: ruas alagadas. Por isso, é preciso que as cidades tenham um sistema de drenagem adequado, de modo que as consequências de chuvas torrenciais sejam minimizados.
As consequências para Belo Horizonte
A prefeitura de Belo Horizonte colocou em prática um plano emergencial para minimizar os problemas causados pelas chuvas. No entanto, nenhum plano seria suficiente para resolver todos os problemas causados pela quantidade de chuva que ocorreu sobre a cidade e região. Mesmo com esse plano emergencial em ação, o cenário de destruição posterior às chuvas é triste.
Os danos materiais são menos preocupantes, mas não foram poucos. O estrago foi grande e, em Belo Horizonte, várias ruas ficaram com crateras, com asfalto destruído, carros foram arrastados e destruídos em várias ruas e telhados desabaram. Esses problemas não se restringiram a regiões com pouca ou nenhuma infraestrutura urbana, eles atingiram também regiões nobres da capital.
Na verdade, Belo Horizonte é uma das cidades mais citadas este ano, mas não é difícil ver que, nos anos anteriores, várias cidades brasileiras encararam os mesmos problemas. Há o argumento de que eventos catastróficos são raros e “não valem” o investimento, o que não é verdade. Se as cidades possuírem um bom preparo e boa infraestrutura, os danos podem ser minimizados e muitas vidas podem ser poupadas.
Outro fator sempre citado nessas discussões é que fazer uma obra para a melhoria da infraestrutura da cidade do tamanho que ela realmente precisa levaria anos. Com a política renovada a cada quatro ou oito anos e diferentes ideias, é difícil levar um projeto completo a frente. Além disso, a verba pública parece estar sempre em falta.
O papel da Engenharia
Como engenheiros(as), arquitetos(as) e planejadores urbanos, precisamos estar cientes de todos os problemas que nos cercam e trabalhar com empenho e dedicação para resolvê-los. O ser humano também precisa saber ocupar o espaço urbano respeitando os elementos naturais e a força da natureza.
O exemplo mais claro disso é sobre a canalização de rios e córregos. É preciso respeitar os corpos hídricos que passam sob a cidade (e não somente concretar e esquecer que eles existem), manter espaços verdes, não construir em áreas de risco geológico, ter projetos dimensionados para o tamanho da cidade (e com manutenção/expansão adequada), etc.
Os fatores citados aqui (risco geológico, drenagem urbana, projetos para rios e córregos e planejamento urbano) são alguns que precisam ser cuidadosamente pensados. Com o preparo adequado, eventos climáticos fortes podem ter seus efeitos minimizados. Não adianta esperar várias décadas ou outros eventos para começar a agir, é preciso fazer isso agora.
Observação: este texto não está, de forma alguma, tratando de política e/ou culpando/retirando a culpa de prefeitos ou partidos. É um apanhado da situação real do ponto de vista da Engenharia.
Referências: Nexo Jornal; G1.
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Larissa Fereguetti
Cientista e Engenheira de Saúde Pública, com mestrado, também doutorado em Modelagem Matemática e Computacional; com conhecimento em Sistemas Complexos, Redes e Epidemiologia; fascinada por tecnologia.